4. As particularidades da Educação como campo epistemológico em construção
Emergente como campo de conhecimento no início do século XX e herdeira de uma tradição que a situava no âmbito dos saberes práticos, enquadrados por uma visão pragmatista, a Educação como campo de estudo tem atravessado um conjunto de tensões relativamente ao seu ponto de ancoragem no percurso de conquista do estatuto social de saber científico.
A dependência da Educação relativamente às áreas do conhecimento científico das Ciências Sociais já afirmadas no plano epistemológico, marcou claramente as tendências da investigação educacional, refletindo a controvérsia inter- e intra- paradigmática que as atravessa. A história da afirmação científica da Educação e de outros domínios que, dentro das Ciências Sociais, se têm construído em torno de dimensões específicas do social – saúde, trabalho, educação desenvolveu-se sobretudo sob a égide da Sociologia e da Psicologia, ao longo do século XX, e associa-se diretamente a um processo de gradual e difícil afirmação ainda não concluído.
Na verdade o ponto de rutura epistemológica – e consequente reconhecimento do campo epistemológico destes grupos de campos científicos mais jovens, em que a Educação se integra, como ciências ou saberes científicos com autonomia – só se alcançará plenamente quando o questionamento investigativo deixar de ser subsidiário de outros questionamentos enquadradores e se situar num campo de problematização próprio, assumindo a consequente especificidade das suas metodologias – processo muito lento e difícil quando os campos de estudo são eles próprios eminentemente complexos. (Sousa Santos & Madureira Pinto, 1986).
Este é, julgamos, o cerne do debate atual, no plano da investigação internacional, mas que, no caso de Portugal, se configura largamente em torno do confronto entre a visão de Ciências da Educação – a linha dominante -, ou uma alternativa Ciência da Educação numa aproximação mais unitária (Carvalho, 1985), ou ainda a defesa de uma área própria de Educação, que deixe de ser objeto de outras ou outra ciência, mas se constitua num campo de questionamento próprio.
Esta última possibilidade, apesar de em certas vertentes idêntica à linha de Carvalho, é mais próxima da linha dominante na investigação do mundo anglo-saxónico, onde não existe tradição de Ciências de Educação, mas antes uma tradição filosófica de matriz pragmática, que induz a construção de campos de saber científicos ancorados em pressupostos emergentes de uma prática – tais como a Educação ou a Saúde. Esta opção, que comporta algum risco de um distanciamento em relação ao que paradigmaticamente se reconhece, ou não, como ciência, implica contudo que as questões de investigação de um campo particular sejam questões próprias da problemática desse campo e da especificidade do seu território, e não resultem apenas da sua leitura como objeto de análise sociológica, psicológica ou outra.
Nesta perspetiva – tal como, de certa forma, na linha da chamada “Ciência da Educação” que Adalberto Dias de Carvalho (1985; 1988) propõe – assume-se inversamente que as Ciências da Educação (Sociologia da Educação, Psicologia da Educação, etc) passariam a um estatuto de ciências-recurso numa lógica de convocação/integração por parte da Educação, mobilizadas para a sua construção de conhecimento educacional, e que este se constituiria como um campo próprio, abandonando a perspetiva associada ao modelo vigente das Ciências da Educação (ou do Trabalho, ou da Saúde), largamente subsidiário da tradição das Ciências Sociais francófonas, em que a Educação – tal como esses outros campos emergentes – se configura sobretudo como o objeto interdisciplinar de uma outra, ou várias outras, das Ciências Sociais.
Este é pois um segundo nível de debate epistemológico, interno ao campo da educação, largamente em aberto, a decorrer no interior da própria comunidade educacional. Roldão, (2011) em texto de conferência de abertura do Congresso da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação em 2005, republicado em 2011, procurava equacionar do seguinte modo as várias linhas em aberto desse debate em curso:
“A oposição que marca a história deste campo de saber centrou-se largamente na dicotomia Educação /Ciências da Educação, na busca dos requisitos que constroem, na história do conhecimento humano, a afirmação epistemológica de um campo novo de conhecimento enquadrável no universo científico: a clarificação do campo de questionamento, a identificação do objecto e a operacionalização de uma metodologia própria e credível. No entanto essa dicotomia mais ampla envolve em cada um dos termos da oposição, o confronto de diversas visões mais específicas:
– uma ciência da educação como ambicionava Piaget, unificada , “disciplina imparcial e objectiva cuja autoridade imporia os princípios” (Piaget, 1969, pp. 12-16)? a quase ciência exacta?
– um conjunto de ciências sociais que se ocupam da educação, entre outros objectos de estudo? O padrão francófono das Ciências da Educação, largamente influenciado pela sociologia nos anos 60?
– um conjunto de saberes específicos , internos ao campo da educação que se vêm afirmando (Desenvolvimento Curricular, Administração Educacional, Didáctica, Avaliação Educacional, )?
– uma ciência da educação, na óptica de Adalberto Dias de Carvalho, entendida como uma ciência humana entre outras, de natureza transdisciplinar que agregaria a si o que ele designa como as ciências auxiliares da ciência da educação, e que teria como método o que este autor designa como “método integrativo” (Carvalho, 1988)?
– Ou – e esta é a perspectiva com que pessoalmente mais me identifico – uma ciência ou campo científico em construção – Educação – definido epistemologicamente pela natureza educacional das suas questões, mobilizador de outros campos para a clarificação dessas questões, e praticando metodologias e conceptualizações não apenas importadas das Ciências Sociais, mas cada vez mais específicas face à natureza do campo epistemológico, que assim se irá consolidando e unificando transversalmente as suas múltiplas vertentes?” (pp. 289-290)
O problema metodológico de que aqui nos ocupamos(quantitativo versus qualitativo) não pode discutir-se fora deste debate epistemológico mais amplo, e das disputas, na verdade políticas em sentido lato, de luta pela afirmação e poder dos diferentes campos do conhecimento.
Na boa tradição bachelardiana, que em si mesma já contesta a visão positivista associada às metodologias quantitativas estritas, diríamos assim, parafraseando o próprio Bachelard, que “ no princípio era a pergunta”. E que é da natureza da pergunta , do questionamento específico, da procura de conhecimento sobre e dentro de um determinado campo contextual, que se pode então debater a via metodológica, e a prevalência, lugar e limites das metodologias qualitativas ou quantitativas.