3. A emergência das Ciências Sociais
A emergência, ao longo deste processo histórico longo, de cada conjunto novo de campos de conhecimento que se reclamam de científicos gerou-se assim a partir das ciências já anteriormente afirmadas, que assumem uma espécie de tutela, sendo os novos campos que procuram ajustar-se à matriz dessas ciências já reconhecidas, em busca de legitimação social e científica.
Assim foi o caso com a primazia das ciências físicas e naturais que diretamente se estruturaram nas visões experimentalistas, no fundamento da observação, na necessidade de verificação/comprovação – aspetos que nascem com a rutura protagonizada por Copérnico e Galileu – e mais tarde na procura da regularidade/lei, já no tempo da estabilização de um formato positivista com Augusto Comte que se sustenta no empirismo de Francis Bacon, por um lado, e na racionalidade cartesiana por outro.
As Ciências Sociais, de que emerge no século XIX, inicialmente pela mão do próprio Auguste Comte, a sociologia como novo saber “científico” central, reclamavam-se da cientificidade até então aceite, assumindo-se a Sociologia como uma “física dos costumes”, o que traduz uma aproximação ao paradigma das ciências exatas, ao tempo bem consolidado no reconhecimento público. O clássico e pioneiro estudo sociológico de Émile Durkeim sobre o suicídio (1986, orig. 1897) expressa bem a procura da regularidade/lei/ causalidade, baseada sobretudo na recolha e tratamento estatístico, configurando uma certa ambição positivista em busca dos padrões de reconhecimento do caráter científico das jovens ciências sociais.
É sobretudo a partir dos estudos em Antropologia, em que a norte-americana Margaret Mead (1901-1978) – que se distinguiu na afirmação do campo sustentado por numerosos trabalhos no terreno, de natureza e metodologia etnográfica – foi pioneira, que se começa a questionar mais claramente a pertinência desta abordagem face ao complexo objeto de estudo das Ciências Sociais – sociedades, culturas, comportamentos humanos e sociais. Este amplo campo de estudo é constituído por fenómenos complexos dificilmente quantificáveis, que cabem na definição esclarecedora de Marcel Mauss de fenómeno social total (Santos Silva & Madureira Pinto, p. 19).
Sociologia, Antropologia, Psicologia desenham ao longo do século XX percursos diversos, em que vão conquistando terreno no que se refere à questão da validade de abordagens qualitativas interpretativas, em alternativa ou complemento à clássica abordagem quantificadora e normalizadora das ciências físico-naturais.
Nestes diversos percursos, algumas tendências da Psicologia começaram por desenvolver-se num padrão muito experimental; entretanto o campo de estudo foi acolhendo, ao longo do século XX, numerosas abordagens alternativas, como a psicanalítica, ou a desenvolvimentista, que coexistem até hoje no campo desta comunidade disciplinar. Também a Sociologia se foi redefinindo em abordagens diversas, algumas fiéis ao padrão clássico, mais positivista, do seu início, mas em que muitas outras linhas se aproximam das visões interpretativas e fenomenológicas consagradas sobretudo na Antropologia e na Etnologia.
Esta diversidade ilustra de alguma maneira a situação de crise paradigmática indiciada por Kuhn. Contudo, a diversidade de desenvolvimentos metodológicos e epistémicos no interior das várias ciências sociais e correspondentes controvérsias, parecem dar razão aos críticos de Kuhn quando contestam a ideia de incomensurabilidade dos paradigmas isto é a sua alegada não comunicação. Como sublinha Garcia (2012):
(…) Thomas Kuhn, mesmo sendo inovador, demonstra certo radicalismo no que concerne a questão dos paradigmas, que ele mesmo intitulou de a “incomensurabilidade dos paradigmas” (Kuhn, 1978). Para ele, os paradigmas são tão opostos uns dos outros que não há uma linguagem comum entre eles; visto que uma parte do processo científico se dá pelos fatores externos, a comunicação entre os paradigmas se tornaria ainda mais improvável. Tal posicionamento radical é duramente criticado por autores como Denzin & Lincoln (2006), que falam da confluência dos paradigmas. Nas palavras do antropólogo Clifford Geertz, um “obscurecimento dos gêneros” (Denzin & Lincoln, 2006, p. 172).
É no interior deste momento particular da evolução do pensamento científico em geral, e das Ciências Sociais em particular, que pode compreender-se melhor a controvérsia quantitativo-qualitativo que atravessa o campo epistemológico da Educação, ele próprio também em busca de uma identidade estável.