Produção e uso do conhecimento: tensões e desafios na investigação educacional

Produção e uso do conhecimento: tensões e desafios na investigação educacional

Ludomedia | QNOW Artigo Produção e uso do conhecimento: tensões e desafios na investigação educacional

Maria do Céu Roldão
Universidade Católica, Portugal
Texto originalmente publicado em Investigação Qualitativa: Inovação, Dilemas e Desafios – Vol. 2

Sinopse

A investigação educacional assume, no interior da investigação em Ciências Sociais, algumas particularidades que acentuam a sua complexidade. São reflexo dessa complexidade as tendências predominantes na tipologia dos estudos produzidos, sobretudo no âmbito da pós-graduação e dos grupos de pesquisa, no interior das instituições universitárias e politécnicas portuguesas e seus centros de investigação.

A predominância de estudos qualitativos em Educação é uma tendência transversal a diversos países. Contudo, muitos dos contributos mais influentes da investigação nas políticas e práticas educativas provêm de estudos extensivos de cariz quantitativo, embora se lhes reconheçam limitações.

A reflexão que se propõe parte da análise de algumas destas tendências, seu potencial e suas limitações, revisitadas a partir de revisões de investigação disponíveis.  Assenta no questionamento das razões – e algumas consequências – de um predomínio marcado de estudos qualitativos contextuais, com destaque para a modalidade estudo de caso. A relação destas tendências com paradigmas epistemológicos de referência será considerada e discutida numa perspetiva histórica .

Situa-se esta problematização em torno da produção e usabilidade do conhecimento resultante da investigação  disponível, considerando dois eixos de análise:  por um lado, a  necessidade de responder à singularidade e complexidade dos objetos de estudo e, por outro, o  requisito da comunicabilidade e transferibilidade do conhecimento produzido, sobretudo numa área de natureza socio-prática como é a Educação.

1.No princípio era a pergunta…

…um breve olhar sobre a história da ciência 

A discussão em torno dos paradigmas de investigação no quadro da investigação em educação, e nas ciências sociais de modo mais geral, tem alimentado ao longo do século XX e XXI, e em particular nas últimas décadas, um extenso e intenso debate. A veemência das convicções em causa tem de algum modo relegado para segundo plano o pano de fundo epistemológico e socio-histórico que constitui a sua génese. Na verdade, o pensamento científico é uma construção histórica que, na sua moldura moderna, emerge no Renascimento e que se estrutura com o advento e afirmação das duas grandes linhas filosóficas da modernidade – o experimentalismo e o racionalismo. De forma breve, recordemos que a origem epistemológica do conhecimento que hoje chamamos de “científico” se associa, em termos históricos, (1) por um lado, ao reconhecimento de que só é possível conhecer aquilo que é demonstrável e comprovável, nomeadamente através de mensurabilidade e experimentação – a grande escola indutiva de Galileu a Bacon e a Comte – e (2), por outro lado, à perceção de que o conhecimento científico é sempre uma resultante do questionamento que o cientista/investigador coloca à realidade e da interpelação que a realidade provoca no cientista –  na linha dedutiva racionalista que, na esteira de Kant sustenta os neo-racionalistas contemporâneos, nas  suas consonâncias e divergências, de que se destacam Popper, Bachelard, Kuhn, Lakatos.

Na perspetiva de Gaston Bachelard, na sua Formação do Espírito Científico (2005)

“Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas. E, digam o que disserem, na vida científica os problemas não se formulam de modo espontâneo. É justamente esse sentido do problema que caracteriza o verdadeiro espírito científico. Para o espírito científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído.” (p. 18; versão original 1938)

Idênticas realidades, nesta perspetiva, podem dar origem a leituras diversas porque é a racionalidade da “lente”, ou seja, a natureza da pergunta e o olhar que lhe subjaz,  que na verdade modela o enfoque da leitura – aquilo que Popper designa com a metáfora da “teoria do holofote” por oposição à “teoria do balde” que referencia aos empiristas: ´”uma observação é uma percepção, mas uma percepção planeada e  preparada (..) cada observação é precedida por um problema, uma hipótese (…) por algo teórico ou especulativo” (Popper, 1975, p. 318).

Estas duas considerações não ocorreram simultaneamente ao longo dos últimos 5 séculos. A conquista da ideia da verificação e comprovação nasce, como sabemos, com  Copérnico e Galileu, nos alvores do experimentalismo renascentista, e o reconhecimento do primado da perspetiva teórica e do questionamento é um produto do crescimento científico dos  séculos XIX e XX, sendo que ambos os movimentos se constituem ainda hoje como integrantes da ciência contemporânea, como sublinha Moniz dos Santos (1991):

“Ao contrário da epistemologia empirista, para a epistemologia racionalista os “factos científicos” não são “dados” mas construídos. Tal pressupõe a existência de estruturas teóricas prévias que orientem a observação….(O racionalismo) não defende portanto, o abandono da observação mas defende que ela não é objectiva nem neutra, que a observação é cada vez mais preparada e orientada por uma teoria cada vez mais profunda e sofisticada.” (p. 40)

Bachelard assume esta visão no quadro epistemológico do neo-racionalismo em que se integra, afirmando que a ciência atual procura sempre o que já sabe, sendo os próprios instrumentos de que se socorre decorrentes de uma teoria. É pois no quadro desta história filosófica do conhecimento que pode debater-se a questão dos paradigmas tal como hoje se confrontam no debate da investigação.

Segundo Bachelard (2005), é possível fazer uma tentativa sequencial de leitura da história deste processo extraordinário:

“Entretanto, para obter uma clareza provisória, se fôssemos forçados a rotular de modo grosseiro as diferentes etapas históricas do pensamento científico, seríamos levados a distinguir três grandes períodos: O primeiro período, que representa o estado pré-científico, compreenderia tanto a Antiguidade clássica quanto os séculos de renascimento e de novas buscas, como os séculos XVI, XVII e até XVIII. O segundo período, que representa o estado científico, em preparação no fim do século XVIII, se estenderia por todo o século XIX e início do século XX. Em terceiro lugar, consideraríamos o ano de 1905 como o início da era do novo espírito científico, momento em que a Relatividade de Einstein deforma conceitos primordiais que eram tidos como fixados para sempre. A partir dessa data, a razão multiplica suas objeções, dissocia e religa as noções fundamentais, propõe as abstrações mais audaciosas. Idéias, das quais uma única bastaria para tornar célebre um século, aparecem em apenas vinte e cinco anos, sinal de espantosa maturidade espiritual. Como, por exemplo, a mecânica quântica, a mecânica ondulatória de Louis de Broglie, a física das matrizes de Heisenberg, a mecânica de Dirac, as mecânicas abstratas e, em breve, as físicas abstratas que ordenarão todas as possibilidades de experiência”(meu destaque).” (p. 9)

A sequencialidade estabelecida por Bachelard não é inteiramente coincidente com uma leitura histórica mais linear como a que acima descrevemos, nem com a teoria das revoluções científicas em torno de paradigmas que Thomas Kuhn propõe, como adiante se referirá. Orienta-se contudo no mesmo sentido, reconhecendo a marcação de ruturas epistemológicas como sinais dos avanços do conhecimento.

Situa-se na evolução desta tentativa teorizadora a proposta analítica de Thomas Kuhn que estruturou a sua análise em torno do conceito de paradigma, que aqui nos importa retomar para a subsequente discussão da tensão qualitativo-quantitativo na investigação educacional.

Partilhar

Notícias Relacionadas

A avaliação de artigos, projetos, relatórios, entre outros, é uma das atividades mais relevantes no mundo da ciência. Na era da Inteligência Artificial, estaremos próximos de poder abdicar de avaliadores ou iremos iniciar um processo híbrido?
As ferramentas digitais de análise podem influenciar positivamente no processo de organização e categorização dos dados. Também apresentam a capacidade de garantir melhor descrição das etapas incorporadas ao tratamento dos dados…
A aplicação da visualização de dados na pesquisa qualitativa aumenta a celeridade da tomada de decisão, permite o acesso a resultados em tempo real a partir de qualquer lugar, transmite a mensagem certa para o público com recurso a poucas palavras, sintetiza e dá sentido a dados complexos.