5. A controvérsia educacional qualitativo-quantitativo em perspetiva
A investigação educacional integra há várias décadas a persistente controvérsia entre os paradigmas positivista-quantitativo e o paradigma interpretativo-qualitativo, uma entre várias designações que podemos encontrar na literatura.
No início da década de 1990, numerosas revistas de investigação deram conta deste intenso debate. A Educational Researcher organizou debates que se prolongaram por vários números da revista dando também conta, nas suas páginas, da controvérsia das décadas anteriores, e reportando-se ainda às atas das conferências internacionais da AERA (American Educational Research Association) durante o mesmo período. As constatações mais relevantes nesse debate iam no sentido da visibilidade de uma certa incompatibilidade entre as duas linhas de investigação, marcadas por visões, finalidades e processos muito distintos, ancorados nos respetivos paradigmas de referência. Emergiam modestamente algumas tentativas de interação, mas predominava, nos termos de Thomas Kuhn, o que acima referenciámos como a assunção da “incomensurabilidade dos paradigmas” no que se refere sobretudo à abordagem metodológica.
Catherine Castellan (2013) descreve, agora em termos atuais, esta mesma dialética, já matizada pela defesa de complementaridades:
“According to Shulman (1986), research on education has and will continue to produce growing bodies of knowledge (…). He explains that there are diverse communities involved in research on teaching and these communities can be divided into two general categories of study: quantitative research and qualitative research. While most in the field of education recognize the existence of these two general approaches for conducting educational research: quantitative and qualitative, there seems to be three perspectives as to how these different approaches are viewed and conducted. The first is or, the second is either/or and the third is both. Some researchers are exclusively affiliated with one or the other approach citing epistemological differences: quantitatively professing an objective truth and a single reality or qualitatively promoting a subjective truth and multiple realities. As with many philosophical debates, a tension arises as some proponents from both sides claim that their approach is most appropriate for educational research and they then mount arguments against the other side. (…)” Each approach should be judged by its own standards. Gall, Borg, and Gall (1996) suggest that at an epistemological level it is not clear that one approach has a greater claim to truth than the other, rather it should be noted that both approaches have helped educational researchers make important discoveries.” (meus destaques) (pp. 2-3)
Na argumentação que vimos desenvolvendo, esta assimilação do tipo de metodologia ao próprio paradigma de conhecimento tem sido frequentemente fator de confusão, já que o paradigma não decorre apenas dos métodos, e muito menos das técnicas, nem se limita a eles. Antes são estes que se situam nas lógicas macro dos paradigmas, sendo nesse caso muito discutível que sejam de facto incomensuráveis. A evolução da investigação educacional tem ajudado a esbater a radicalidade desta oposição, sendo cada vez mais frequentes os estudos ditos mistos ou quali-quanti.
Revisões de investigação das duas últimas décadas (Roldão et al, 2006; Brezsinsky, 2013) assinalam esta tendência, mas identificam, nos estudos em revisão uma crescente afirmação, predomínio e legitimação preferencial das metodologias interpretativas em Educação. A par deste crescimento geral, assinala-se ainda que dentro dos estudos em Educação, maioritariamente de matriz qualitativa, predomina o estudo de caso. Ao mesmo tempo verifica-se que se convocam, com frequência crescente, em estudos de matriz qualitativa, metodologias mistas, caracterizdas pela incorporação de instrumentos de recolha quantitativos, como por exemplo os questionários. Pardal e Correia assinalam deste modo essa complementaridade (1995):
“A observação atenta da vida social indica com clareza a existência de regularidades do fenómeno social, estando fora de dúvida ser possível encontrar naquele indicadores objectivos que as exprimem e que, portanto são passíveis de mensuração (…). Mas tal facto, por melhor que seja uma construção no plano estatístico, não oferece, em si, garantia de veracidade absoluta das conclusões a que se possa chegar, nem subtrai valor algum ao ponto de vista “qualitativo”…(…) Eles são de facto complementares (…).” (pp. 18-19)
Parte deste debate inscreve-se no pano de fundo histórico e epistemológico que acima procurámos evocar. Assim, os problemas predominantes na investigação em educação ao longo do século XX e início do XXI foram adotando diversas ênfases de acordo com a história dos próprios contextos educativos que ajudam a situar o atual predomínio das metodologias qualitativas mas também a despistar algumas eventuais limitações que se lhe podem associar. Como sublinha Alarcão (2013), num texto analítico em que desconstrói um conjunto de dilemas frequentes nos investigadores educacionais, reforça a crítica às visões dicotómicas qualitativo-quantitativo, afirmando que “não se trata tanto de uma dicotomia, mas de um contínuo” (p. 110), que em última análise decorre do questionamento que o investigador coloca à realidade.
O enfoque na aprendizagem e no aluno, que caracterizou as preocupações de eficácia da educação na década de 1950 e 1960, transportou como referentes essenciais as abordagens cientificas e as modalidades de tipo experimental em uso na Psicologia, no que se refere à objetivação e mensurabilidade de processos , objetivos e resultados da aprendizagem. Mas são também referenciais os contributos de outras abordagens mais holísticas como as associadas a John Dewey, ao Progressivismo e à Escola Nova, pela via do enfoque no aluno enquanto construtor do conhecimento, visão sustentadora do desenvolvimento das perspetivas construtivistas e socio-construtivistas. Intervém ainda neste macro cenário de tensões teóricas o reforço de abordagens behaviouristas ao ensino e à aprendizagem associadas à pretendida eficácia, nas décadas de 1960 e 1970.
Contudo, a influência da pressão política para a melhoria da educação, vista então como instrumento de competição política (na década de 1950-60 entre Estados Unidos e União Soviética), num tempo em que a própria legitimação social da Psicologia se associava muito à aproximação ao experimental (exames, testes, avaliações psicológicas, etc), contribuiu para um predomínio tendencial de abordagens quantitativas na investigação em educação, então vistas como mais legitimadoras.
O processo de universalização da escola característico da Europa do pós-guerra, com impacto visível sobretudo a partir dos anos 1960 e 1970, arrastou consigo o aumento do insucesso decorrente do acesso de camadas social e culturalmente diversas a um padrão curricular plasmado pelo cânon da cultura dominante. Este fenómeno desencadeou o crescendo de investigação educacional desenvolvida na zona de influência da Sociologia, trazendo para o centro da pesquisa perspetivas sociológicas associadas ao estudo de fenómenos complexos, que favoreceram uma abertura maior ao qualitativo.
Por seu lado a Antropologia enquanto campo, e a fenomenologia enquanto abordagem epistemológica, com a valorização do enfoque no caso e no contexto , trazem um fôlego acrescido à predominância do qualitativo Destaca-se ainda a linha de estudos desenvolvida no campo da Didática e do Currículo, e mais recentemente dos Estudos Curriculares, que, situando o seu enfoque no interior do fenómeno educativo, fazem ressaltar as abordagens contextuais e diferenciadas, dada a complexidade e diversidade dos objetos e contextos em estudo – o que contribui para o reforço da preferência por metodologias qualitativas no campo de estudo da Educação (Figueiredo, 2013).
A predominância de estudos qualitativos tem sido assinalada em numerosas revisões de literatura investigativa em educação (Roldão et al, 2006):
“A revisão deste conjunto de investigação vem confirmar a tendência, já verificada em outras revisões (Rodrigues e Esteves, 2003, Roldão, 2006, Alarcão, 2004), para a crescente incidência da investigação educacional, em geral, nas abordagens de natureza qualitativa, subsidiárias de um paradigma interpretativo. (81% de estudos de caso em 87,55 de estudos qualitativos no universo estudado). Tal tendência suscita alguma reflexão critica, na medida em que, no plano epistemológico, o debate quantitativo/ qualitativo continua em aberto, embora sob novas conceptualizações. Globalmente, corresponde a um reconhecimento da complexidade dos objectos de estudo, e à afirmação crescente de procedimentos e filosofias interpretativas no domínio do social, historicamente construídas como respostas às limitações de perspectivas estritamente quantitativas neste domínio, associadas em larga medida a visões positivistas. A questão epistemológica subjacente a este debate não pode assim ser subsumida numa visão dicotómica simplista, aliás desmentida por tendências mais recentes que preconizam novos dispositivos de mútua incorporação ou complementaridade de dimensões da abordagem qualitativa com perspectivas quantitativas mais finas que permitam articular, em conjunto, um nível mais complexo de rigor.” (pp. 34-35)
Parte desta crescente afiliação da Educação nas abordagens qualitativas, que tem continuado a acentuar-se nos anos mais recentes, como atestam as Atas, por exemplo, das Conferências da EERA, ou dos Congressos da SPCE, e os Colóquios das Questões Curriculares (atualmente Luso-ibero-brasileiros), iniciados no âmbito da área de Currículo e Estudos Curriculares do Instituto de Educação da Universidade do Minho (atualmente na sua 11ª edição em 2014, de realização anual) resulta certamente da complexidade do objeto de análise e da sua natureza contextual e práxica, Mas, por outro lado, não pode dissociar-se também do próprio modo de produção da investigação e dos loci onde a mesma decorre. Os mesmos autores assinalam:
“Esta predominância significativa de estudos qualitativos (81,9%) particularmente estudos de caso, não pode também ser desligada do próprio modo de produção da investigação, condicionado de formas diferentes e por relações de poder diversas no caso de dissertações de mestrado, teses de doutoramento ou projectos de investigação da responsabilidade de investigadores profissionais no interior de equipas e centros de investigação acreditados(…) A produção investigativa predominantemente qualitativa não resulta assim, apenas, de uma opção ou tendência epistemológica – que é real – mas reflecte também este outro tipo de constrangimentos, que implicam, por exemplo, que a abordagem do tipo estudo de caso seja mais acessível e viável no conjunto de limitações temporais e institucionais em que a elaboração de uma dissertação de mestrado é produzida.” (pp. 34-35)
Assinale-se contudo que a investigação qualitativa não esgota a abrangência e mesmo a complexidade dos fenómenos educativos em estudo, para cuja explicação a visão extensiva, e a perspetiva de conjunto, a comparabilidade, e a identificação de tendências, se constituem como elementos relevantes, aos quais só abordagens de matriz quantitativa podem dar resposta.