António Pedro Costa, Universidade de Aveiro (Portugal)
Investigador do Centro de Investigação em Didática e Tecnologia na Formação de Formadores (CIDTFF), Departamento de Educação e de Psicologia, da Universidade de Aveiro e colaborador do Laboratório de Inteligência Artificial e Ciência de Computadores (LIACC), da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto.
Os Computer-Assisted Qualitative Data Analysis Software (CAQDAS), como o webQDA ou ATLAS.ti, são pacotes de software que possibilitam aos utilizadores analisar os seus dados qualitativos (texto, imagem, vídeo e áudio) através de funcionalidades que permitem organizar, codificar, categorizar e questionar os dados com a finalidade de responder às questões de investigação. Atualmente, um CAQDAS pode incluir várias caraterísticas, entre as quais:
- Mecanismos de reconhecimento e transcrição automáticos de dados nos formatos de áudio, vídeo e imagem para texto;
- Importação, de forma dinâmica, de dados em massa de várias fontes;
- Criação de mecanismos de agregação de forma paralela aos dados em multimédia (áudio, vídeo e imagem) com seus respetivos trechos de transcrição automática;
- Mecanismos de criação de códigos de análise em massa e respetiva codificação automática;
- Incrementação de processos de comparação da codificação de vários utilizadores dentro de um ou vários sistemas de códigos;
- Métodos para a geração de modelos de visualização qualitativos e/ou quantitativos (i.e., mapas conceptuais, gráficos de matrizes);
- Criação de ferramentas de apoio à tomada de decisão no processo de comparação da classificação e codificação por vários utilizadores;
- Promoção da interação entre investigadores através da implementação de funcionalidades de Colaboração e Cooperação, Coordenação e Comunicação.
A tomada de decisão sobre qual o melhor software a usar deve iniciar-se bastante antes da sua própria exploração. Idealmente, seria importante que o utilizador tivesse conhecimento prévio do que pretende obter com a sua exploração antes de selecionar um CAQDAS. Aqui, focamo-nos nas competências digitais ou computacionais do utilizador. Estas competências, em consonância com os conhecimentos teóricos, epistemológicos e metodológicos dos estudos qualitativos, permitem caraterizar três abordagens comportamentais:
- Comportamento do método domina o do software: o comportamento do método pode dominar o comportamento do software quando o CAQDAS é utilizado para executar técnicas analíticas existentes de novas maneiras;
- Comportamento do software complementa o do método: o comportamento do software pode complementar o comportamento do método quando o CAQDAS facilita o desenvolvimento de novas práticas de pesquisa, como “query coding” e “auto-coding” de dados;
- Comportamento do software domina o do método: o comportamento do software pode dominar o comportamento do método ao determinar os métodos adotados pelos investigadores ou influenciar as saídas analíticas.
Com o rápido avanço das ferramentas de Inteligência Artificial Generativa, o pensamento crítico emerge como um pilar para alavancar o potencial ilimitado dos CAQDAS sem se perder nas suas imensas possibilidades ou ser desorientado pelas complexidades inerentes a estas ferramentas.
Esta articulação entre comportamento do software e aplicação metodológica ressalta a essencialidade do pensamento crítico, ou capacidade de avaliar informações e argumentos de forma reflexiva e metódica, com o objetivo de formar inferências fundamentadas. Com o rápido avanço das ferramentas de Inteligência Artificial Generativa, o pensamento crítico emerge como um pilar para alavancar o potencial ilimitado dos CAQDAS sem se perder nas suas imensas possibilidades ou ser desorientado pelas complexidades inerentes a estas ferramentas. Neste contexto, partilhamos alguns exemplos em que esta competência é transversal a todo o processo de análise de dados qualitativos (ver figura 1):
Figura 1: Pensamento Crítico na Análise de Dados Qualitativos
- Seleção/organização dos Dados: Como escolher os dados mais relevantes para a análise? A escolha criteriosa dos dados robustece a análise, afastando a tentação de favorecer o que aparenta visibilidade imediata em detrimento de informações potencialmente mais significativas.
- Codificação e Categorização: A importância de codificar de forma consistente e evitar a sobre-interpretação. Vital para uma interpretação imparcial, é necessário manter coerência na atribuição de códigos, evitando a tendência de ler demais em dados que podem oferecer múltiplas interpretações.
- Identificação de Padrões: Como reconhecer padrões genuínos sem forçar interpretações.
- Interpretação dos Resultados: Analisar os resultados com um olhar crítico, considerando diferentes perspetivas.
Desafios e armadilhas da análise de dados qualitativos:
- Vieses Pessoais: Reconhecer e mitigar a influência das nossas próprias crenças e experiências.
- Interpretação Seletiva: Evitar interpretar os dados de forma seletiva para confirmar preconceitos.
- Limitações do Software: Conhecer as limitações do CAQDAS e não confiar cegamente nos resultados.
Em 2023, a comissão europeia delineou um conjunto de competências (38 competências divididas em 7 dimensões) para investigadores (European Competence Framework for Researchers). Ainda que sem dados específicos que consolidem este ponto, conjeturo que investigadores numa fase inicial (e não apenas) da sua carreira não consigam desenvolver a maioria das competências apresentadas. Desta forma, a constituição de equipas multidisciplinares ou, quando tal não for possível, o recurso a peritos de determinada área, favorece análises de qualidade superior. O intercâmbio de ideias e competências específicas amplia as perspetivas analíticas e reduz a incidência de sobreposições analíticas unidimensionais.
No caso dos CAQDAS, funcionalidades como a comparação de codificações possibilitam um diálogo enriquecedor entre utilizadores, enquanto as ferramentas de apoio fortalecem a integridade do processo decisório. A interação sustentável entre investigadores estabelece um terreno fértil para a inovação e a validação cruzada, emoldurando o processo de análise qualitativa num conjunto robusto e integrado de estratégias de investigação.
Delinear fronteiras claras entre a tecnologia e a metodologia, refletir ativamente sobre as decisões ao longo da análise, e escolher um CAQDAS não apenas pelas suas potencialidades tecnológicas, mas pela sua adequação dentro do contexto e alcance do projeto de investigação, serve para balizar cientificamente o uso dos CAQDAS. Destarte, o pensamento crítico consolida-se como o alicerce indispensável ao escolher e manusear tais ferramentas, garantindo o discernimento necessário para utilizar a tecnologia com propósito e direção e mantendo a primazia da integridade científica nas técnicas e resultados da investigação qualitativa.
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