
Pablo Burneo, Universidade de Aveiro (Portugal)
Doutorando em Educação – Didática e Desenvolvimento Curricular na Universidade de Aveiro e investigador no Centro de Investigação em Didática e Tecnologia na Formação de Formadores (CIDTFF).

Yakamury Lira, Universidade de Aveiro (Portugal)
Doutorando em Educação – Didática e Desenvolvimento Curricular na Universidade de Aveiro e investigador no Centro de Investigação em Didática e Tecnologia na Formação de Formadores (CIDTFF). Investiga a integração da inteligência artificial generativa (GenAI) na formação de investigadores. Tem experiência em ensino de ciências, tecnologias educacionais e cultura maker.
Como estudante de engenharia no Equador, há mais de uma década, tive minha primeira confusão linguística com o inglês técnico. Em Mecânica, os professores falavam de stress e strain como conceitos distintos. Mas no meu vocabulário em espanhol, havia apenas esfuerzo. O significado diluía-se — e eu decorava fórmulas sem realmente compreender a diferença.
Hoje, como investigadores doutorandos em Portugal, o meu colega Yakamury (nacionalidade brasileira) e eu enfrentamos um enigma semelhante, mas num contexto bem diferente. Enquanto toda a literatura que lemos sobre competências em IA é produzida maioritariamente em inglês, as nossas línguas maternas — o espanhol e o português — parecem manter distinções mais claras entre termos como “competência” e “habilidade”. Essa diferença linguística fez-nos perceber que, muitas vezes, a ambiguidade nas definições não vem apenas do conteúdo, mas do idioma em que ele é produzido. Por isso, acreditamos ser urgente trabalhar com uma linguagem comum e consistente, que permita alinhar os termos usados na definição de competências. Este esforço torna-se ainda mais crítico quando observamos a variedade de usos das palavras “competence”, “competency” e “skill” nos materiais disponíveis quando se fala de Inteligência Artificial Generativa (GenAI). Frequentemente, estas palavras são usadas para descrever elementos muito distintos — como habilidades práticas, atitudes ou disposições — sem que fique sempre claro qual é a sua natureza ou função no desenvolvimento profissional.
A chegada da GenAI não está apenas a transformar as ferramentas que usamos para ensinar ou investigar — está também a baralhar as palavras que usamos para falar sobre o que significa “ser competente”. O perigo é que a facilidade de acesso crie uma “ilusão de conhecimento”, levando-nos a externalizar a memória e a contornar o esforço cognitivo que, na verdade, constrói as competências de pensamento crítico e criatividade (Oakley, et al, 2025). No meio desta mudança, surgem perguntas que nos acompanham há meses: o que são afinal competências? E quais delas passam a ser essenciais para trabalharmos com GenAI?
Estas são questões centrais que tivemos a oportunidade de aprofundar num capítulo de livro recentemente publicado, onde exploramos modelos de competências para a integração da IA Generativa na educação (Burneo et al., 2025). As reflexões que partilhamos neste texto partem deste estudo mais vasto e procuram detalhar a distinção entre termos e ter uma definição que acompanhe nossos projetos – uma necessidade de clarificação que o próprio capítulo aponta como fundamental. A nossa análise, informada por este trabalho e pela literatura existente, baseou-se em referenciais internacionais como documentos da UNESCO, da Comissão Europeia e em literatura académica relevante (incluindo, por exemplo, os trabalhos de Mikeladze et al., 2024; Teodorescu, 2006; Faruqe et al., 2022; Sattelmaier & Pawlowski, 2023; Michalon & Camacho-Zuñiga, 2023; ou Miao & Cukurova, 2024).
Ao mergulharmos no universo da GenAI, sentimo-nos perdidos numa névoa terminológica. Os termos “competence” e “competency”, omnipresentes na literatura, pareciam fugidios e confusos. Para nosso alívio, a nossa investigação revelou que não estávamos sozinhos. Esta ambiguidade conceptual é tão reconhecida que motivou projetos internacionais de grande escala, como o projeto DeSeCo (Definition and Selection of Competencies) da OCDE, cujo ponto de partida foi precisamente a necessidade de estabelecer uma base teórica clara para estes conceitos (Chouhan & Srivastava 2014, Rychen 2004, Rychen 2009, Le Deist & Winterton, 2005, Westera, 2001).
O nosso momento de “eureka” chegou quando percebemos que a confusão não era apenas semântica, mas também histórica e geográfica. Descobrimos uma divisão fundamental entre duas grandes escolas de pensamento. Por um lado, a tradição americana, fortemente influenciada pela psicologia da gestão, tende a focar-se nas “competencies” (no plural) como as características e comportamentos subjacentes de um indivíduo que levam a um desempenho superior — o como e o porquê da sua atuação [(Le Deist & Winterton, 2005)]. Por outro lado, a tradição britânica desenvolveu uma abordagem mais funcional, focada na “competence” (no singular) como a capacidade demonstrada de cumprir um padrão de desempenho observável, geralmente num contexto de trabalho — o o quê que uma pessoa consegue eficazmente fazer (Chouhan & Srivastava 2014, Le Deist & Winterton, 2005; Teodorescu, 2006).
Esta distinção foi a chave que nos permitiu organizar o debate. Em vez de contraditórios, os termos passaram a ser vistos como complementares, descrevendo diferentes facetas de uma mesma capacidade humana. Isto leva-nos a uma definição integradora, muito alinhada com as conclusões de projetos como o DeSeCo (Crick, 2008, Le Deist & Winterton, 2005, Rychen 2004, Rychen 2009), que resolve o nosso dilema inicial. Assim, para o nosso trabalho, passamos a entender que a competência é uma capacidade multifacetada que integra vários aspetos do ser de um indivíduo – conhecimentos, habilidades (skills), valores e atitudes – permitindo-lhe navegar e responder eficazmente às exigências complexas de um determinado contexto (Crick, 2008, Rauch, 2008, Rychen 2009). Com esta clareza, podemos agora analisar de forma mais crítica o que realmente significa ser competente na era da GenAI.
A GenAI, porém, desafia este modelo. Ao mesmo tempo em que exige skills como a escrita de prompts ou o uso crítico de ferramentas, ela também demanda competências integradas — como pensamento ético, avaliação crítica e colaboração interdisciplinar — que envolvem mais do que uma técnica: exigem uma postura. Modelos recentes, como “The European Competence Framework for Researchers Tool” da European Commission (2023), o “Living guidelines on the Responsible use of Generative AI in Research” da European Commission (2025) e o “AI competency Framework for teachers” da Miao and Cukurova (2024). Estes documentos apontam para essa complexidade: a competência na era da GenAI precisa mobilizar conhecimentos, habilidades, atitudes e valores de forma coordenada.
Sem este esclarecimento conceitual, corremos o risco de formar docentes e investigadores que sabem “usar” GenAI, mas não têm profundidade para aplicá-la com responsabilidade, criatividade e criticidade.
Competências na Era da IA Generativa
A GenAI não apenas demanda novas habilidades técnicas, como “prompt engineering” e literacia em IA (Faruqe et al., 2022; Burneo et al., 2025), mas também exige a consolidação de capacidades éticas e reflexivas. Segundo a Miao and Cukurova (2024), é necessário desenvolver cinco dimensões essenciais em professores: mentalidade centrada no humano, ética em IA, fundamentos técnicos, pedagogia com IA e formação contínua.
No âmbito da investigação, Lira et al. (2025), identificam cinco eixos de competências para doutorandos: hard skills, soft skills, competências éticas, gestão da inovação e competências metodológicas. Ambos os modelos apontam para uma mesma direção: a competência como integração de saberes técnicos e valores humanos. Reforçando a necessidade de abordagens estruturadas para a capacitação, um outro trabalho em que participamos foca-se precisamente num quadro de formação baseado em competências para a IA Generativa no Ensino Superior (Burneo al., 2025).
Pontos de Convergência entre Professores e Investigadores
Apesar de contextos distintos, há uma interseção notável entre as competências requeridas para a docência e para a investigação com GenAI. A tabela 1 a seguir apresenta alguns exemplos ilustrativos — não se trata de uma lista exaustiva, mas de um ponto de partida para pensar convergências possíveis:
Tabela 1 – Pontos de convergência nas competências de investigadores e professores
Competência | Investigadores | Professores |
|---|---|---|
Pensamento Crítico | Avaliar evidências geradas por IA | Analisar e reinterpretar saídas de IA |
Curadoria Digital | Selecionar ferramentas para pesquisa | Planejar uso pedagógico das IAs |
Ética e Integridade | Evitar viés e plágio em outputs de IA | Promover uso ético com os estudantes |
Reflexividade Epistêmica | Questionar o papel da IA na ciência | Reposicionar o professor frente à IA |
Uma Estrutura em Camadas para Trazer Clareza
Com este enquadramento conceitual estabelecido, percebemos que ideias complexas também precisam de uma estrutura visual para serem comunicadas. Por isso, começamos a pensar em competência não como uma categoria nebulosa, mas como um sistema em camadas — uma construção em que cada parte contribui para o todo.
Imagine que estás a construir uma casa:
- Conhecimento (knowledge) é o alicerce — compreender como algo funciona (por exemplo, como a GenAI processa dados).
- Habilidade (skill) é o tijolo — uma técnica concreta, como escrever um prompt zero-shot.
- Competência (competency) é a parede — o conjunto integrado de conhecimento, habilidade e atitude, como avaliar criticamente as saídas de IA.
- Ser competente (competence) é a casa pronta — a performance real e consistente, como desenhar e aplicar um curso com GenAI.
Esta imagem ajuda-nos a distinguir conceitos que muitas vezes se misturam nas discussões sobre GenAI. Também percebemos que a palavra “literacia” — muito usada em formações sobre GenAI — aparece frequentemente na base desta estrutura. Ter “literacia em GenAI” implica saber o que a IA é, como funciona e o que pode fazer. Mas ter competência implica saber agir sobre este conhecimento — de forma crítica, criativa e ética. E, no mundo real da sala de aula ou da investigação, esta distinção faz toda a diferença.
A estrutura não é perfeita, mas tem-nos ajudado. Quando a aplicamos para analisar resultados de aprendizagem, as distinções tornam-se mais claras. Na tabela 2, apresentamos exemplos de classificação de termos.
Tabela 2 – exemplos de classificação de termos frequentemente utilizados nos textos
Item | Classificação | Porquê |
|---|---|---|
Prompt engineering | Habilidade | Técnica treinável em poucas horas, com foco específico |
Colaboração humano-IA | Competência | Envolve julgamento, ética e consciência de fluxo de trabalho |
Literacia em GenAI | Competência | Exige entendimento técnico, avaliação crítica e uso ético |
Avaliação de conteúdos de IA | Competência | Implica análise sistemática dos resultados gerados por IA |
Após revisitarmos autores, modelos e metáforas, sentimos a necessidade de propor uma definição que traduza, sob nossa óptica, o que significa ser competente na era da GenAI.
Ser competente não é apenas saber — é saber fazer com intenção, em um ambiente onde máquinas também sabem, calculam e escrevem. É expressar autoria, assumir responsabilidade e manter consciência epistêmica em um mundo algoritmizado.
Esta definição não é um ponto final. É um marco de partida. A partir dela, novas perguntas se abrem:
Quais competências específicas emergem para docentes e investigadores? Como desenvolvê-las? Como avaliá-las? Onde estamos alocados como humanos na curadoria do conhecimento?
Para responder a essas perguntas, o primeiro passo é este: falar a mesma língua.
Referências
Burneo, P., Costa, A. P., Pinho, I., Muniz, A. B., & Moresi, E. A. (2025). Competence Frameworks for Exploring Generative AI in Education. In Artificial Intelligence (AI) in Social Research (pp. 160-175). GB: CABI.
Burneo-Arteaga, P., Lira, Y., Costa, A. P., & Murzi, H. (2025, no prelo). Capability-Based Training Framework for Generative AI in Higher Education. Frontiers in Education, 10. doi: 10.3389/feduc.2025.1594199
Chouhan, V. S., & Srivastava, S. (2014). Understanding competencies and competency modeling―A literature survey. IOSR Journal of Business and management, 16(1), 14-22.
Crick, R. D. (2008). Key competencies for education in a European context: Narratives of accountability or care. European Educational Research Journal, 7(3), 311–318. https://doi.org/10.2304/eerj.2008.7.3.311
European Commission. 2023. ResearchComp: The European Competence Framework for Researchers Tool.
———. 2025. “Living Guidelines on the Responsible Use of Generative AI in Research.” http://data.europa.eu/eli/dec/2011/833/oj
Miao, Fengchun, and Mutlu Cukurova. 2024. AI Competency Framework for Teachers. AI Competency Framework for Teachers. UNESCO. https://doi.org/10.54675/zjte2084
Faruqe, F., Watkins, R., & Medsker, L. (2022). Competency Model Approach to AI Literacy: Research-Based Path From Initial Framework to Model. In Advances in Artificial Intelligence and Machine Learning; Research (Vol. 2, Issue 4, pp. 580–587). https://www.oajaiml.com/
Le Deist, F. D., & Winterton, J. (2005). What is competence? In Human Resource Development International (Vol. 8, Issue 1, pp. 27–46). https://doi.org/10.1080/1367886042000338227
Lira, Y. R., Burneo, P. S., & Costa, A. P. (2025, no prelo). Identifying Key Competencies for Education PhD Students with Generative AI Integration: A Scoping Review. Springer.
Miao, F., & Cukurova, M. (2024). AI competency framework for teachers. In AI competency framework for teachers. UNESCO. https://doi.org/10.54675/zjte2084
Michalon, B., & Camacho-Zuñiga, C. (2023). ChatGPT, a brand-new tool to strengthen timeless competencies. Frontiers in Education, 8. https://doi.org/10.3389/feduc.2023.1251163
Mikeladze, T., Meijer, P. C., & Verhoeff, R. P. (2024). A comprehensive exploration of artificial intelligence competence frameworks for educators: A critical review. In European Journal of Education (Vol. 59, Issue 3). John Wiley and Sons Inc. https://doi.org/10.1111/ejed.12663
Oakley, B., Johnston, M., Chen, K.-Z., Jung, E., & Sejnowski, T. (2025). “The Memory Paradox: Why Our Brains Need Knowledge in an Age of AI.” In The Future of Artificial Intelligence: Economics, Society, Risks and Global Policy (Springer Nature, forthcoming).
Rauch, D. P. (2008). The concept of competence in educational contexts. https://www.researchgate.net/publication/232495759
Rychen, D. S. (2004). Developing key competencies in education: some lessons from international and national experience. UNESCO International Bureau of Education.
Rychen, D. S. (2009). Key competencies: Overall goals for competence development: An international and interdisciplinary perspective. In International handbook of education for the changing world of work: Bridging academic and vocational learning (pp. 2571-2583). Dordrecht: Springer Netherlands.
Sattelmaier, L., & Pawlowski, J. M. (2023). Towards a Generative Artificial Intelligence Competence Framework for Schools. 291–307. https://doi.org/10.2991/978-94-6463-340-5_26
Teodorescu, T. (2006). Competence versus competency: What is the difference? Performance Improvement, 45(10), 27–30. https://doi.org/10.1002/pfi.027


